quinta-feira, 16 de abril de 2009

Momento acadêmico

Trago hoje uma reflexão do braço sociológico-urbano do Cityando. O texto do antropólogo Roberto daMatta aqui reproduzido me foi enviado por uma colega da pós-graduação e reflete sobre a questão do 'muro', assunto já comentado por aqui.

O problema do muro no Brasil

Roberto DaMatta

"As casas americanas não têm muro. É um índice psicológico. A vida de comunidade não compete com a vida de intimidade. É uma continuação, se não for, ao contrário, uma fonte".
Alceu Amoroso Lima, "A Realidade Americana" (1955)

Aqueles primeiros brasileiros que visitaram os Estados Unidos — gente do porte e Monteiro Lobato, Anísio Teixeira, Érico Veríssimo e de Vianna Moog — deram-me régua e compasso para “ler” o Brasil. Porque, num sentido implícito, como desvendaram os antropólogos na figura pioneira de um Gilberto Freyre (que por lá andou, tornando-se mais brasileiro), ao descobrir a América, redescobriam o Brasil numa complexa dialética e presenças e ausências. Só os idiotas viajam para dizer que foram, comeram, compraram e viram e não aprenderam coisa alguma!

A observação que abre essa crônica alinhavou toda uma interpretação da vida social brasileira que expressei num conjunto de trabalhos lidos, usados, criticados, recalcados e ignorados.

Entre nós, a casa murada, com estátuas de leões nos seus limiares e cachorros ferozes nos seus quintais, defendia-se da rua. Nos Estados Unidos, prossegue Alceu Amoroso Lima: "A vida em comunidade precede à vida de intimidade. O geral, nesse terreno, antecipa-se ao particular. O público ao privado. Não há homem público (...) que não tenha a sua altura, os seus ordenados ou rendimentos e até mesmo a sua dieta posta em pratos limpos. Não há barreiras entre a sala de visitas, a sala de jantar e até mesmo os quartos. Tudo é público." E, um pouco mais adiante, com profundidade característica e sem os labirintos retóricos, típicos dos presunçosos que infestam o nosso mundo público, arremata: "A comunidade mata a intimidade naquilo que tem, por vezes, de mais precioso. As linhas suprimem as entrelinhas. A vida superficial se desenvolve em detrimento da vida profunda" (pág. 41 da obra mencionada).

Ou seja, na América não há - como tenho reiterado no meu trabalho - contraste ou paradoxo entre as
normas da casa e da rua. Para bem e mal, ambas - intimidade e vida pública - são expressões de um mesmo e único conjunto de leis escritas no papelório jurídico e - como dizia Rousseau - nos corações.

Quando visitei os Estados Unidos, em 1963, tive o mesmo choque. Não havia muros. A igualdade como valor (e como causa perdida a ser incessantemente perseguida e implementada) suprime muros e conduz a uma terrível transparência. Um dos preços da tal democracia boa de falar, complicada de fazer e duríssima de praticar, é derrubar muros. Mas eis que, neste Brasil democrático, estamos pensando em construí-los em volta de favelas como um modo "ecológico" de proteger a Natureza!

A Grande Muralha do Rio de Janeiro - terra do carnaval, da praia e da mistura aberta -, prestes a ser edificada, não terá nada a ver com ausência de coragem política para zonear a cidade, com o uso dos instrumentos apropriados - fiscalização, policiamento, aplicação da lei, distinção plena e clara do legal e do ilegal -, mas será parte da "questão ecológica". No passado, quando éramos mais honestos e cada qual sabia o seu lugar, os escravos viviam enclausurados em senzalas; hoje, usamos o ideário da correção política e falamos em proteção ambiental para segregar os mais agressivamente desiguais.

Construindo um "muro ecológico" mudamos, como convém, os termos do problema. Não se trata mais de conviver com uma avassaladora pobreza historicamente engendrada por um sistema que odeia a igualdade na prática, para incensá-la no altar do politicamente correto. Não! Trata-se, isso sim, de proteger a Natureza. A proteção da Natureza racionaliza a solução definitiva inapelável (e portanto ditatorial) para a pobreza em massa que envergonha (e ameaça) os que residem ao seu redor. Quando descobrirmos mais invasões, a culpa terá sido do muro, não nossa.

De minha parte, eu - um conservador de carteirinha e já em várias listas de paredão - continuo achando incrível que se continue a pensar que um muro (e não um programa pra valer de educação primária, secundária e de igualdade em geral) vai estancar a desigualdade; tal como no período escravista pensávamos que a Lei do Ventre Livre ia, um belo dia, liquidar espontaneamente a escravidão.

Um muro para deter o avanço da iniquidade social que nós não conseguimos sequer equacionar, não vai deter coisa alguma. Antes de realizar tal monumento ao nosso gosto pela sacralização da desigualdade em escala estupidamente grandiosa, vale a pena pensar numa coisa óbvia. Todo muro tem dois lados. Se do lado de cá, ele impede o avanço do nosso descaso para com os pobres; do lado de lá, ele vai servir de trincheira, casamata e torre para os que se aproveitam da pobreza "criminosamente" e não apenas pelo voto. Com o muro, concretiza-se o que o Zuenir Ventura diagnosticou como uma cidade partida que, murada, será irremediavelmente repartida.

6 comentários:

  1. Sem dúvidas, reafirmo meu comentário anterior: muro não vai conter, proteger ou preservar nada. Indo ao encontro de Roberto DaMatta, vejo uma incapacidade, nos meus semelhantes, de reconhecer o óbvio. A mentira "plantada" sob a forma de preservação ambiental chega a ser ofensiva, por contarem com a certeza de que a maioria comprará a idéia vendida nos meios de comunicação de massa. Será que é tão difícil pensar em educação e oportunidades democráticas para a real contenção do avanço sobre as matas? Se a real intenção é a preservação do meio ambiente, por que não promovemos a retirada das mansões localizadas nas encostas da cidade?
    Caso haja a retirada de 30% dessas casas, comprometo-me a subir os morros para colocar ao menos um tijolo!

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  2. Aline,

    Só posso te dizer que sempre adotei na minha vida pessoal e profissional uma frase que aprendi ainda no movimento estudantil: quem não atua, compactua. Reproduzir o texto brilhante do Roberto da Matta é atuar também, é não compactuar com a voz "moderna" que resolve sues problemas com a vassoura e o tapete. Repartir a cidade será torná-la cada vez mais bélica e beligerante. bjs

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  3. Querida,
    Passei pra conferir o texto e o blog, q por sinal está mto legal! =]
    Aguardo vc no chopp dia 28!
    Saudades,
    Victoria (a colega da pós!)

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  4. Hahahahaha obrigada pela visita, colega da pós!

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  5. Adorei o texto e compartilho de muitas opiniões!! Sempre muito bom refletir!
    Ótimo post!!
    Bjks, Beta
    www.criativesse.blogspot.com

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  6. Bom... que é preciso haver educação de qualidade, não há dúvidas. De qualidade pq não basta colocar todos na escola, mas que seja uma escola em tempo integral, com esportes, com filosofia, acompanhemento psicológico e visão crítica para que de fato se mude algo daqui a 30, 40, 50 anos... e que as pessoas não estudem apenas pra conseguir um bom emprego e continuarem em suas vidas a mediocridade que se vê em 80% das pessoas.

    Também não tenho dúvidas que as mansões das encostas ali não deveriam estar. E igualmente não tenho dúvidas de que se usa o meio ambiente como desculpa para combater a pobreza de forma totalmente equivocada neste episódio. Claro que está que não vai funcionar. Óbvio.

    Dito tudo isso, reafirmo que sou a favor os muros. Não para combater a pobreza, pois não é assim que se combate. Não pra impedir apenas que os pobres construam pelas matas, mas deveria ser para que ricos e pobres não construissem. Não defendo o muro como a solução, pois como acabei de escrever, não é solução se feito da forma como se pretende fazer. Defendo como uma das muitas ações que deveriam tomar para a construção de uma sociedade decente. Uma ação a curto prazo para defender a mata enqto os bons resultados de uma educação de verdade não são colhidos.

    É como um sujeito que está se afogando. Ele, ao tentar se salvar, se debate, impede assim, sem querer, claro, que o salvem. Quem tenta salvá-lo decide então lhe dar um soco. E desta forma consegue fazer com que pare de se debater e o salva. Dar um soco é bom? Neste caso foi o que permitiu lhe salvar.

    É como uma pessoa com fortes dores, dores insuportáveis. Ela então toma um analgésico. Analgésico resolve o problema de alguém? A meu ver, não. Só combate o sintoma, não a causa. Mas naquele momento permite que a pessoa respire e possa com tranquilidade buscar e resolver as causas do problema.

    O muro não é solução. Mas pode ser, a meu ver, parte da solução. Uma solução a curto prazo, temporária.

    Mas repito o que escrevi no post anterior: como não está sendo feito de forma correta, o muro só vai criar problemas, continuaremos com mais e mais favelas, com menos e menos florestas. Com menos e menos educação, com mais e mais mediocridade.

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